A Vida de Um zombie

Texto: ISAAC MARION

Tradução: Vanessa Bachesqui (Val)

Eu sou um zumbi, e não é tão ruim assim. Estou aprendendo a conviver com isso. Peço desculpas por não poder me apresentar de forma apropriada, mas não tenho mais um nome. Quase nenhum de nós tem. Nós nos esquecemos deles, assim como das datas de aniversário e números PIN. Acho que o meu devia começar com um “T”,mas não tenho certeza. É engraçado, porque quando estava vivo, eu vivia esquecendo o nome dos outros. Acho que a ironia é uma constante na vida dos zumbis, uma espécie de piada perpétua. Mas é difícil rir quando seus lábios apodreceram.

Antes de virar um zumbi, acho que eu era um homem de negócios ou um jovem profissional desse tipo. Acho que eu trabalhava num daqueles empregos sufocantes de escritório num arranha-céus em algum lugar. As roupas penduradas aos restos do meu corpo são formais-casuais de alta qualidade. Um belo par de calças de gabardine, camisa de seda prateada, gravada Armani vermelha. Eu provavelmente seria um cara bem elegante se meus intestinos não estivessem se arrastando a meus pés. Ha.

Nós gostamos de brincar e especular sobre o que restou de nossas aparências, vez que essas últimas escolhas de roupas são normalmente as únicas indicações de quem nós éramos antes de nos tornarmos ninguém. Os visuais de algumas pessoas são menos óbvios que o meu. Jeans e uma camiseta branca. Saia e blusinha. Então, fazemos adivinhações aleatórias.

Você era um encanador. Você, uma barista. Toca algum sino?

Normalmente não.

Ninguém que eu conheça tem memórias específicas. Nós reconhecemos algumas coisas – edifícios, carros, gravatas – mas o contexto nos escapa. Nós estamos aqui, fazemos o que fazemos. Nos falta uma ótima dicção, mas conseguimos nos comunicar. Nós grunhimos e gememos, fazemos gestos com as mãos, e às vezes uma ou outra palavra escapa. Não é muito diferente do que era antes.

Existem algumas centenas de nós vivendo numa vasta planície de terra perto de alguma grande cidade. Não precisamos de abrigo nem de calor, obviamente. Ficamos largados na poeira, e o tempo passa. Acho que já estamos aqui por um bom tempo. Apesar das minhas entranhas penduradas, estou nos estágios iniciais de apodrecimento, mas por aqui há alguns mais velhos que são pouco mais que esqueletos com alguns pedaços de músculo grudados. Esses músculos de alguma maneira ainda se contraem e esticam, então eles continuam se movendo. Nunca vi nenhum de nós “morrer” de velhice. Talvez vivamos para sempre, não sei. Não penso muito mais no futuro. Isso é algo totalmente diferente de antes. Quando eu estava vivo, o futuro era tudo em que eu conseguia pensar. Era obcecado por ele. A morte me deixou mais relaxado.

Mas me entristece o fato de que tenhamos esquecido nossos nomes. Entre todas as coisas, essa me parece a mais trágica. Não sinto falta do meu próprio nome, mas lamento por todos os outros, porque eu quero amá-los, mas não sei quem são.

 

Hoje um grupo está indo para a cidade para achar alguma comida. Como essa expedição começa é: um de nós fica com fome e começa a se arrastar na direção da cidade, e um punhado de outros o segue. Pensamento focado é uma coisa rara entre nós, e nós o seguimos quando o identificamos. Senão só ficaríamos zanzando e grunindo. Nós zanzamos e grunimos um bocado, e fica frustrante às vezes. Anos se passam dessa maneira. A carne murcha nos nossos ossos, e nós ficamos por aí, só esperando que isso aconteça. Fico curioso com a idade que eu posso ter.

A cidade onde as pessoas vivem não fica longe. Nós chegamos em torno do meio dia e começamos a procurar por carne viva. A nova fome é um sentimento estranho. Você não sente no seu estômago – claro que não, já que alguns de nós nem tem estômagos. Você simplesmente sente…no corpo todo. Começa a se sentir “mais morto”. Eu vi alguns de meus amigos voltarem ao estado de morte total, quando a comida é escassa. Eles simplesmente reduzem a velocidade, e param, e viram cadáveres de novo. Eu não consigo entender isso.

Acho que o mundo quase inteiro acabou, porque as cidades pelas quais vagamos estão decaindo tão rápido quanto nós. Prédios estão desmoronando. Carros mortos e enferrujados lotam as ruas. Todo os vidros estão quebrados. Não sei se houve uma guerra, ou uma praga, ou se fomos só nós mesmos. Talvez todas essas coisas. Não sei. Não penso mais em coisas desse tipo.

Num conjunto de prédios de apartamentos destroçado, encontramos algumas pessoas, e as comemos. Alguns deles tem armas, e como sempre perdemos parte de nosso efetivo, mas não nos importamos. Porque nos importaríamos? O que é a morte, agora?

Comer não é um negócio agradável. Mastigo o braço de um sujeito,e odeio isso, é nojento. Odeio os gritos dele, porque não gosto de dor, não gosto de ferir ninguém, mas esse é o mundo agora, isso é o que fazemos. Claro, se eu não comer ele inteiro, se eu deixar o bastante, ele se levantará e me seguirá de volta ao nosso campo poeirento fora da cidade, e talvez isso faça eu me sentir melhor. Vou apresentá-lo a todos, e talvez nós vamos perambular e grunhir um pouco. É difícil dizer o que são “amigos” agora, mas talvez isso seja o mais próximo. Se eu não comer ele todo, se eu deixar o suficiente…

Mas é claro que não deixo o suficiente. Como seu cérebro, porque é a melhor parte. É a parte que, ao engolir, faz com que minha cabeça fique leve com os sentimentos. Memórias claras. Por algo entre tres e dez segundos, dependendo da pessoa, eu me sinto vivo. Capturo traços de comidas deliciosas, bela música, perfume, pôres do sol, orgasmos, vida. Então a sensação desaparece, me levanto e me arrasto pra fora da cidade, ainda morto, mas me sentindo um pouco menos. Me sentindo OK.

Não sei porque nós temos que comer pessoas. Não entendo o que obtemos por mastigar o pescoço de alguém. Certamente não digerimos a carne nem absorvemos os nutrientes. Meu estômago é um saco podre de bile seca, inútil. Não conseguimos digerir, simplesmente comemos até que a gravidade force o peso pra fora de nossos cus, então nós comemos mais. Parece tão inútil, mas é o que nos mantém andando. Não sei porque. Nenhum de nós realmente entende porque somos do jeito que somos. Não sabemos se somos o resultado de algum tipo de infecção global, ou alguma maldição ancestral, ou alguma coisa ainda mais sem sentido. Não falamos sobre isso. Debate existencial não é uma coisa importante na vida zumbi. Estamos aqui, fazemos coisas. Somos simples. Ás vezes é bom.

Fora da cidade de novo, de volta com os demais no campo poeirento, começo a andar em círculos sem nenhum motivo definido. Planto um pé na terra e giro sobre ele, rodando e rodando, levantando nuvens de poeira. Antes, quando eu estava vivo, nunca teria feito algo desse tipo. Eu me lembro do stress. Lembro das contas a pagar e dos prazos a cumprir, relatórios de retenção de ativos. Lembro de estar tão ocupado, sempre, em todo lugar, todo o tempo ocupado. Agora estou simplesmente no campo aberto, andando em círculos. O mundo foi destilado. Estar morto é fácil.

Depois de alguns dias disso, paro de andar, e fico parado, balançando de trás pra frente e grunindo um pouco. Não sei porque faço estes barulhos. Não estou com dor, nem estou triste. Acho que é só o ar sendo espremido pra fora dos meus pulmões. Quando eles se decompuserem, o barulho provavelmente vai parar. Agora, enquanto estou balançando e grunindo, reparo numa mulher morta que está a alguns metros de mim, olhando para as montanhas distantes. Ela não se chacoalha nem geme, sua cabeça só balança de um lado para o outro. Gosto disso nela, do fato de que ela não se balança nem grunhe. Caminho até ela e paro ao seu lado. Balbucio algum tipo de cumprimento, e ela responde com um balançar de ombros.

Gosto dela. Estendo o braço e toco seu cabelo. Não faz muito tempo que ela morreu. Sua pele é cinza e seus olhos estão ligeiramente afundados, mas ela não tem órgãos nem ossos expostos. Sua roupa de morte é uma saia preta e uma camisa branca de botões. Imagino que ela costumava ser uma garçonete.

Tem uma placa de identificação pregada no seu peito.

Posso ler seu nome. Ela tem um nome.

O nome dela é Emily.

Aponto o dedo para o seu peito. Devagar, com grande esforço, eu digo “ Em…ily”. A palavra rola pelo que sobrou da minha língua, como mel. Que nome bom. Me sinto aquecido em dizê-lo.

Os olhos ensombreados de Emily se abrem mais ao som, e ela sorri. Eu também sorrio, e então eu estou um pouco nervoso porque meu fêmur estala e eu caio de costas no chão em cima da poeira. Emily simplesmente ri, e é um som cru, engasgado, adorável. Ela se estende e me ajuda a levantar.

Emily e eu nos apaixonamos.

Não tenho certeza de como isso acontece. Me lembro como o amor era, antes, e isso é diferente. Isso é mais simples. Antes, havia fatores emocionais e biológicos complexos em jogo. Tínhamos longas listas para conferir e testes elaborados para passar. Reparávamos em cortes de cabelo e profissões e tamanhos de seios. E o sexo estava lá, confundindo tudo, como a fome. Criava ânsia, ambição, competição, fazia com que as pessoas deixassem suas casas e inventassem automóveis, naves espaciais e bombas atômicas quando poderiam simplesmente ficar sentados em seus sofás até a morte. Desejos animais. Vontades subconscientes. O sexo era o que fazia o mundo girar.

Tudo isso acabou agora. O sexo, que um dia foi uma força tão universal quanto a gravidade, agora é irrelevante. Ambição e desejo há muito tempo saíram da equação. Meu pênis caiu há duas semanas.

Então a equação foi deletada, o quadro negro apagado, e as coisas são diferentes agora. Nossas ações não tem qualquer motivação profunda. Rolamos pela terra e ocasionalmente temos interações desajeitadas com nossos colegas. Ninguém discute. Não existem brigas, nunca.

E Emily não é um processo complicado. Eu simplesmente a vejo, caminho até ela, e sem qualquer motivo, decido que quero estar com ela por um longo tempo. Então agora rolamos na terra juntos ao invés de sozinhos. Por algum motivo, gostamos da companhia um do outro. Quanto temos de ir à cidade para comer gente, vamos sempre separados, porque é desagradável, e é algo que não queremos compartilhar. Mas partilhamos todo o resto, e é legal.

Resolvemos andar até as montanhas. Demorou três dias, mas agora estamos no topo, olhando para uma lua gorda e branca. Atrás de nós, o céu noturno é vermelho pelas cidades distantes pegando fogo, mas isso não nos importa. Eu pego a mão de Emily, desajeitadamente, e ficamos olhando para a lua.

Não existe nenhum motivo real para nada disso, mas como eu disse, esse mundo foi destilado. O amor foi destilado. Tudo é fácil agora. Ontem minha perna se quebrou, e eu nem mesmo ligo pra isso.

 

 

 

End.

 

Sobre Catlypse

Sou uma pessoa Parcialmente estranha

Publicado em 21/07/2011, em OUTROS, Traduzidas. Adicione o link aos favoritos. Deixe um comentário.

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